segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Obama lá, não aqui!


A grande expectativa no Brasil deste início de ano fica por conta da posse de Barack Obama. O novo presidente dos EUA tem gerado uma onda de otimismo, como se fosse a salvação de décadas de exploração e imperialismo norteamericano. Em um momento em que a economia estadunidense passa por uma violenta crise, acho estranho que a expectativa seja mais nossa (pelo menos é o que me parece), do que deles. Mas a explicação deste entusiasmo talvez resida na baixa autoestima do brasileiro, mais especificamente do negro brasileiro. Isso me leva a pensar que há um “que” de ingenuidade na esperança depositada na posse do primeiro presidente negro da história dos países desenvolvidos e como se nossas mazelas estivessem com os dias contados.
Talvez a explicação mais viável para esse equivocado entusiasmo seja um desconhecimento da dinâmica racial que acompanha Brasil e EUA em suas especificidades. As mazelas dos negros americanos ainda estão lá, e a capital Washington é uma prova cabal disso. Tive a oportunidade de conhecer DC em abril do ano passado e como todo bom assistente social fiz questão de percorrer bairros periféricos da capital americana. Claro que presenciei um grande, para não dizer imenso, contingente negro em condições precárias de existência e desemprego.
Washington tem hoje uma das maiores populações negras dos EUA e um dos maiores índices de criminalidade, o que me faz associá-la a precariedade e pobreza de um pais que optou por um capitalismo selvagem como forma de gerar um suposto (e desigual) desenvolvimento. Mesmo assim, o contingente de negros na universidade é relevante o bastante para gerar uma considerável classe média negra americana, fruto de um bem sucedido sistema de cotas, do qual inclusive o presidente Obama foi beneficiado. Se as questões racistas entre os estadunidenses ainda não estão suficientemente resolvidas, e ainda geram conflitos raciais violentos, o drama da intolerância se agrava a partir de uma nova configuração da problemática racial, proveniente do inesgotável processo imigratório. Os ‘cucarachas” estão lá e não deixam dúvidas, fazendo o trabalho sujo que o americano médio não quer fazer. As fronteiras ainda estão a todo vapor, despejando, literalmente, milhares de ilegais todos os meses, em um país que só pode oferecer frio (frieza) e trabalho semiescravo, mas invocando estrategicamente a todo momento o “american way of life”, como forma de permanecer no topo do mundo.
Aqui as coisas são diferentes. Ainda há uma luta pela implantação das cotas. A classe dominante não quer “largar o osso” e afirma tratar-se as cotas de um racismo às avessas. Parece se esquecer, porque conveniente, de séculos de escravidão que enriqueceu seus antepassados e alimenta, ainda hoje, suas aplicações nos paraísos fiscais do Caribe. O mito da democracia racial, do qual Gilberto Freire foi multiplicador e idealizador com seu “Casa Grande e Senzala”, ainda tenta dar conta de que vivemos em um paraíso racial, multiétnico e colorido, isento de grande conflitos. Estatísticas mentirosas procuram demonstrar numericamente a chegada do negro brasileiro à classe média, como se as favelas e guetos lotados de pretos fossem espaço de conforto e qualidade de vida. As prisões estão lotadas de homens negros e os filhos pretinhos desta população têm grande chance de não terminar sequer o nível fundamental.
Mesmo assim continuamos a depositar no pobre Obama nossas frustrações, expectativas e sonhos não realizados, como se a história dos negros brasileiros e americanos fosse uma só. É importante, considero, estabelecer sim uma ponte entre o racismo nos dois paises, considerando a grande diápora negra, consequência da concretização da base do capitalismo contemporâneo. Entretanto não é menos importante relativizar os sentimentos dos negros americanos com a chegada de Obama ao poder, na medida em que, se houver progressos na questão racial americana, serão na e para a sociedade americana, coberta de possibilidades concretas de mudança, haja vista a trajetória do novo presidente. O que sobrar para o Brasil, a curto e médio prazo, pode ser apenas uma passageira elevação na autoestima, que deve passar, quando percebermos que a nova estrela pop da política internacional governará tão somente para os americanos. Mas devo dizer que fiquei feliz e... que é bom ter um negão lá, lá isso é. A ver!

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Sobre o amor e a morte...




O que se pensa ou se fala sobre as relações interpessoais, ou ainda, as relações que convencionamos chamar de amorosas ou afetivo-sexuais, envolvem um grande cabedal de reflexões. Todos sabemos teorizar ou filosofar sobre o amor, sobretudo quando estamos apaixonados ou lidamos com situações de discurso afeto em nosso dia-a-dia. Em meu cotidiano profissional costumo ouvir de tudo um pouco, ainda que às vezes somente possa dar espaço a catarse pura e imediata. Aquela que libera a respiração para outras falas que me interessam em meu processo interventivo. Mas não adianta. Tudo o que ouço está ligado, extremamente ligado, ao afeto. Não há como ignorar as falas, que sendo da ordem das relações humanas e afetivas, promovem em mim necessidades de reflexão. Daí tenho pensado no amor e na morte. Seriam instâncias meramente opostas? Não seria reducionista atribuir à falta de amor, o desejo de morrer? Mas seria esse desejo, uma aproximação concreta e consciente da morte física e biológica?
Emile Durkheim em “O Suicídio” (1897) ousou dizer que o autoextermínio teria uma razão,uma motivação social e não individual. Sendo assim o sociólogo e pai da sociologia descreve três tipos de suicídio: o egoísta, no qual o indivíduo se afasta de sua condição humana; o anômico ou original, em que se vêem obstruídas as possibilidades de se estabelecer normas e regras que valorizem a vida e o altruísta, suicídio por lealdade a uma causa. Durkheim estava parcialmente certo ou relutantemente errado, o que se pode observar com as idéias revolucionárias de Sigmund Freud acerca do inconsciente.
Contemporâneo idéias de Durkheim, Freud, sobre a morte, ou “quase” sobre a morte, fundamenta em sua extensa obra o conceito de “pulsão de morte”. Este reside na argumentação que tem como referência a biologia (e seus parâmetros positivistas)e a mitologia grega, quando vai de encontro ao mito de Aristófanes, cujo objetivo foi alcançar uma vida amorosa favorável – sua pulsão de vida – de acordo com a leitura Freudiana.
A pulsão destrutiva - de morte – sugere, assim, um retorno ao inanimado, à inércia que procede a vida. E é essa negação do “eu” vivo e constante, do pulsar da vida biológica, que o pai da psicanálise avalia como um conflito psíquico, que tem como base desejos que são aparentemente antagônicos, porque presentes na vida de todos nós, em maior ou menor intensidade. Esse é o aparente antagonismo entre a vida (Eros) e a morte (Thânatos), ao qual todos, todos, estamos sujeitos.
Em tempos de masoquismos e autoboicotes há de se fazer uma diferenciação entre estes e o amor, segundo a psicanálise inaugurada por Freud. Os primeiros se aproximam do adiamento da satisfação, da recusa da condição desejante do prazer, porque autodestrutivo. Ao amor, nos cabe vinculá-lo à sublimação que, para além das pulsões, permite o exercício do prazer, não só pelo sexo, mas em atividades psíquicas elevadas, artísticas ou ideológicas. Afastando-se dos estados de infelicidade ou comportamentos antissociais, o amor sublime parece produzir, se sublime de fato, um afastamento do “eu” inadequado à vida que pulsa. O amor não pode, portanto, sufocar. Não deve ser aquele que se justifica pelo discurso inoportuno do “eu te amo” que avança cegamente sobre o outro (ou dos outros) – que descaracteriza esse outro e que por isso pretende do outro se apropriar.
Assim, os amores doentios significam uma captura da essência do outro, que não é mais nada, senão a causa dos desejos (de TODOS os desejos) de quem supostamente se ama. Na ilusão do outro tratar-se de um “ser total”, transformamos nosso pares na fonte do impossível, do inatingível, do inumano... do perfeito.
Desta forma, o amor sublimado tem como fim gerar o belo, ainda que por caminhos tortuosos que podem percorrer, por exemplo, o estado fugaz da paixão (ainda que às vezes seja esse um caminho deliciosamente perigoso) – mas que pode avançar em direção à ética, ao sofrimento do(s) outro(s), à escuta e compreensão daquele(a) que percebemos como fonte de nossos desejos . O amor então caminha em direção à sublimação, porque se pretende sublime, ou como disse Sócrates: “O amor parece ser um intermediário entre os homens e os deuses”.
Falemos mais do amor, esse sentimento tão banalizado em nosso dia-a-dia e que por ser tão pouco compreendido fornece elementos medíocres para folhetins baratos, sem substância e sem significado para a vida que pulsa.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Feliz 2009!


Ontem recebi uma ligação de uma pessoa a quem prezo muito. Trata-se de Gabriel, amigo que conheci quando morei e vivi dias maravilhosos na Espanha, país que aprendi a amar! Estudei com Gabriel na Universidade Autônoma de Madri, mais especificamente em uma disciplina que discutia as relações de gênero, ministrada por uma amiga em comum, Cristina Sánches Muñoz. Gabriel é uma pessoa especial. Logo nas primeiras semanas de aula fomos a um dos inúmeros cafés da universidade, o que fez que durante o curso levássemos para a sala de aula os papos acalorados que tínhamos durante um churro e outro. Isso fez, e honestamente é um mero detalhe nessa estória de amizade, que engrenássemos um namoro, que fez com que minha estada na capital espanhola se tornasse mais colorida e feliz! Viajamos pra caramba e aprendi com este espanhol de Villa Verde Alto, coisas que a universidade se recusa a ensinar: humildade intelectual e coragem de falar coisas que nem sempre a maioria, porque careta demais, gostaria de ouvir. Voltei para o Brasil e Gabriel, pouco depois, se casou com uma feminista judia, amiga em comum, e recentemente me disse ter se convertido ao islamismo, para desespero da mãe, católica ferrenha. Ruth Meyer, amiga e mulher de Gabriel, agora espera uma filha, que se chamará Raquel.
Na conversa de quase duas horas no MSN, em que conversamos sobre a vida e seus descompassos, este irmão me revelou a preocupação e responsabilidade em botar no mundo uma mulher. Como garantir a felicidade de um filho, perguntava? O que priorizar na educação? Como ensinar uma mulher a se proteger de um mundo ainda machista? Me recordo de, no Marrocos, numa atitude panfletária e juvenil, sairmos juntos catando o lixo que alguns turistas babacas jogavam no chão das medinas, só para provocar um debate sobre a consciência ecológica. Não fomos felizes nos debates provocados, mas éramos felizes por termos com quem compartilhar idéias e reflexões em meio à falta de consciência de pessoas que se dizem civilizadas. Gabriel me disse uma coisa que me emocionou: “quisera Alah prover para Rachel amigos como tu , para que pudesse se sentir amparada em momentos de reivindicação por civilidade e amor ao próximo”. Fiquei feliz e emocionado, embora ache, honestamente, que a pequena filha de meu amigo mereça coisa melhor! Ando menos panfletário, admito. Mas ainda acho que seja nossa maior responsabilidade SER alguém disponível, para que o outro se sinta acolhido em suas angústias e questionamentos. Isso não é fácil. É um exercício diário, de total desprendimento daquilo que levamos a vida inteira fazendo, alimentando nosso ego e nosso individualismo. Estar disponível, acredito, é estar aberto às diferenças, sabendo que o objetivo é ser igual no direito de viver com dignidade. Por isso procede e muito a preocupação de Gabriel. Afinal, o que estamos fazendo para que Raquel encontre um mundo melhor?
Honestamente penso que avancei um pouco, após 42 anos de vida, no sentimento de alteridade, de me colocar no lugar do outro, não por questões puramente religiosas, mas porque considero, sobretudo, uma atitude ética, onde o coletivo deve ser o fim, e não o meio para benefícios individuais. Talvez Gandhi tenha sido um dos maiores sábios do século passado, quando disse que devemos ser nós mesmos, a mudança que queremos para o mundo e assim, projetarmos no outro, esses avanços, em direção à um mundo justo e fraterno. Sei das dificuldades que isso envolve, mas pelo menos Gabriel pode continuar contando comigo para enfrentar àqueles que jogam no chão das medinas da vida sua falta de consciência. Isso já é um começo. Um bom começo também seria no dia-a-dia de nossas ações cotidianas e aparentemente banais: respeitarmos as filas, darmos lugar aos idosos nos coletivos, jogarmos lixo nas lixeiras, darmos bom dia aos vizinhos, ter uma atitude de carinho com o outro sempre que estivermos mal humorados, não termos sentimentos de vingança... definitivamente não é uma tarefa fácil. Mas refletir sobre isso, certamente fará com que amanhã avancemos em direção a um mundo melhor, onde a pena (o pior dos sentimentos, em minha opinião, porque nos coloca acima do outro, e não em condições de igualdade), dê lugar ao sentimento mais nobre que podemos ter: o amor.
No final de minha “terapia” com Gabriel, não pude deixar de perguntar por que este, casado com uma judia, não se converteu ao judaísmo, optando pelo islamismo. Meu amigo, quando achei que já tinha me ensinado o suficiente no último dia do ano, me respondeu: “Porque me converter ao islamismo pode me proporcionar exatamente o que desejo de uma relação: o respeito e a absoluta tolerância às diferenças. O que mais poderia ser um exemplo de amor para minha filha Raquel, do que isso?” Seja bem-vinda Raquel. Tio Dionísio já te ama profundamente.

FELIZ 2009!!!!!!!!!!!!!!!

domingo, 14 de dezembro de 2008

100 anos de Burle Marx


“O território é o dado essencial da vida cotidiana”, já dizia o grande geógrafo Milton Santos. Eu humildemente acrescentaria, já que as idéias deste gênio levam a tal conclusão, essencial da vida humana. Aquela que pulsa entre as ruas e avenidas, aparentemente dispostas pelo destino imposto por engenheiros e arquitetos. O grande geógrafo enunciava que a noção de espaço é indivisível dos seres humanos que o habitam, e estes o modificam todos os dias. Sendo assim o território envolve, ao mesmo tempo, forma e função. Trata-se, assim, de uma construção simbólica coletiva, contínua e cotidiana, operada por todos nós, que habitamos nosso território. Talvez por isso seja preciso generosidade ao lidarmos com espaço onde estamos inseridos. Uma generosidade que passa pela forma como olhamos para esse espaço, interferimos nesse espaço e principalmente, como o preparamos para gerações futuras. Fernando Pessoa dizia que “os deuses são deuses porque não se pensam”. Se pensar, ou pensarmos diariamente como estamos lidando com nossas condições objetivas e subjetivas de vida, significa resgatar nossa condição humana de forma coletiva. Afinal, como diria Hanna Arendt, "Quem habita este planeta não é o Homem, mas os homens”.
Foi pensando nisso que percorri com entusiasmo a exposição (gratuita!) do Paço Imperial, em comemoração aos 100 anos de nascimento Roberto Burle Marx. O que se expõe é a materialização da generosidade de um homem, em relação ao espaço em que viveu, e no qual vivemos nós, agora.
A exposição revela um Burle Marx que poucos conhecem. Pintor, desenhista, escultor, cronista, cenógrafo, músico e joalheiro, o homem que conhecemos como paisagista usou a arte como mediadora para concretização de um sonho. Tornar pleno de luz, cor e beleza, o que antes poderia ter como destino o concreto armado, foi seu grande desafio.
Herdeiro do modernismo, Burle Marx usou e abusou do cubismo e do abstracionismo em prol de projetos visuais singulares e modernos. O que parecia impossível diante de fortes influências européias (em especial a inglesa e francesa), se tornou viável diante do investimento em uma arte voltada para as especificidades brasileiras e tropicais. Por isso, Lauro Cavalcante, curador da exposição, inclui o artista entre o que chama de “artistas totais”. Aqueles a quem o destino reserva a árdua tarefa de fazer a intercessão entre as artes e o espaço territorial. E é isso que vemos na exposição.
No térreo já podemos encontrar um belo jardim, projeto para a área interna do Museu Nacional de Belas Artes (RJ). No primeiro pavimento, ao som de Schubert, Mahler, Brahms e Beethoven (seus compositores prediletos), nos deparamos com lindos painéis de tecidos. O pincel de Burle Marx também revela um artista preocupado com o todo, ou como disse Mário Pedrosa já em 1958 no Jornal do Brasil: “ Os pincéis de Burle Marx são ditados para um pensamento sintético, que leva cada detalhe a participar da idéia do todo (...). E o próprio esquema de cores não é mais independente, produto do mero gosto impressionista do pintor. Agora (com Burle Marx) tudo é forma, espaço.
E haja espaço para tanta arte e sensibilidade. Estão expostos na antiga casa real, projetos famosos de paisagismo no Brasil, como o do Aterro do Flamengo (RJ), Parque da Pampulha (BH), Palácio Gustavo Capanema (Ministério da Educação – RJ), Parque do Ibirapuera (SP), e internacionais como o da Praça Rosa de Luxemburgo (Berlim). Esses projetos revelam uma quase obsessão pela beleza, aliada à funcionalidade. Ou como disse o próprio Burle Marx: “Em relação à minha vida de artista plástico, da mais rigorosa formação disciplinar para o desenho e a pintura, o jardim foi, de fato, uma sedimentação de circunstâncias. Foi somente o interesse de aplicar sobre a própria natureza os fundamentos da composição plástica de acordo com sentimento estético de minha época.” E assim, o artista inseriu em suas paisagens criadas, a antes negligenciada flora brasileira.
Trata-se de um privilégio para nossa cidade abrigar uma exposição desse porte, não somente pela qualidade e organização, mas porque o Rio foi a terra na qual viveu esse paulista generoso, capaz de pensar a vida cotidiana e o espaço no qual vivemos, como arte.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Rebobine (e veja), por favor!!!


Poucas vezes ri tanto com um filme. Sou meio desconfiado com comédias americanas, mas tem uma galera fora do esquemão holywoodiano, a do baixo orçamento, que adoro. Incluo nesta seleta lista os filmes aparentemente babacas de Michel Gondry (Brilho eterno de uma mente sem lembranças). “Rebobine por favor” (Be Kind Rewind), que estreiou hoje, é hilário! Poucas vezes se pode ver um roteiro que prime pela originalidade e ao mesmo tempo divirta (quase mijei de tanto rir), sem subestimar a inteligência do espectador. O filme é engraçado sim, mas o pano de fundo é de uma ácida crítica aos blockbusters que arrecadam milhões de dólares, mas que na maioria das vezes não fazem pensar ou sequer divertem.
Pra começar, e até justificar tanto humor rasgado e o nonsense do filme, a história se passa, não em New York (onde se ambientam 9 entre 10 filmões americanos), mas no insípido, inodoro e incolor estado de New Jersey, parte dos fundos da cosmopolita NY. Bingo! Um filme que fala da possibilidade de fazer cinema sem dinheiro e que subverte a lógica das altas produções americanas, valorizando o trash o lema “ uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, não poderia ter sido mais feliz na escolha da locação.
O roteiro é despretensioso, mas genial. Seguinte: um tiozinho (Danny Glover), que tem uma locadora de filmes VHS, se vê em apuros quando a especulação imobiliária chega às suas portas. Um prédio bem velho (tipo Rio Antigo), onde supostamente viveu uma lenda do Jazz é seu único bem e fonte de sobrevivência. Na era dos DVDs ( que estavam começando à chegar), a pequena locadora vive às moscas, e o simpático tiozinho resolve reagir e investigar formas de modernizar seu negócio, prestes a falir. Desavisado, viaja, mas deixa o empreendimento nas mãos de dois malucos-beleza (Jack Black e Mos Def) que se vêem às voltas com uma acidental desmagnetização das fitas de vídeo. Isso basta para que, diante da necessidade de locar as fitas, resolvessem... REFILMAR, REPRODUZIR as películas!! Não, vocês não entenderam mal. As toscas criaturas resolveram colocar dentro das fitas, as suas versões trash de arraza-quarteirões como... Robocop, Caça-fantasmas, Conduzindo Miss Dayse, Hora do Rush, 2001 uma Odisséia no Espaço, O Rei Leão... e cujo o público, apaixonado pelas novas versões (suecadas), solicitassem. O auge da criatividade (ou desespero) fica por conta do momento em que os três, agora com a ajuda de uma outra criatura insana, têm a brilhante idéia de fazer as refilmagens com os próprios interessados, ou seja, os clientes da locadora. As cenas são tão hilárias e capazes de deixar Zé do Caixão ou Afonso Brazza com dores abdominais. Eu fiquei, e por isso recomendo. Diversão certa cambada!

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

A AIDS E OS EFEITOS DA “LONGA DURAÇÃO” E DA MEMÓRIA



Como tradicionalmente acontece no dia 1º de dezembro, o mundo volta-se (cada vez menos, é verdade) para reflexões acerca da AIDS. Como fenômeno histórico e imerso no caldo cultural da glogalização, acho oportuno fazer algumas considerações sobre o que considero como determinantes para que algumas questões, de ordem moral e religiosa, ainda persigam a AIDS.
O início oficial AIDS, na década de 1980, trouxe à tona uma série de questões que, relacionadas a uma doença sem cura, potencializou um debate acerca do que, comumente, chamamos de preconceito. Temas antes debatidos e polarizados através de grupos progressistas e conservadores, geralmente situados no âmbito das ciências sociais e humanas mas, também, inseridos na moral religiosa, agora encontravam-se envolvidos no mundo da ciência natural, em especial na medicina, que anunciava aos quatro ventos a descoberta de uma doença incurável.
As particularidades que cercaram (e ainda cercam) a AIDS residem no fato desta estar relacionada a minorias historicamente discriminadas e ser, dentro de uma definição médica, uma doença sexualmente transmissível.
Estas duas particularidades, logo identificadas pela comunidade científica, geraram, ao longo destas duas últimas décadas, um vigoroso debate que trouxe à tona a chamada dimensão social da epidemia. Não que as outras doenças já existentes também não a tivessem, mas o binômio AIDS-morte e sua relação com grupos de homossexuais, usuários de drogas (injetáveis) e profissionais do sexo, bem como a relação de todos estes elementos com a prática sexual, revelou-se um emaranhado de análises que conduziram, inclusive, às primeiras medidas de enfrentamento da doença, sejam elas governamentais ou não governamentais. As duas particularidades enunciadas e sua presença consciente ou inconsciente, sejam no senso comum ou no discurso científico, podem ser definidas como um processo de elementos de “longa duração” que acompanham a AIDS desde os primórdios, infiltrando-se na memória coletiva, ainda que sendo parte de uma história considerada recente, como a da epidemia de AIDS. A problematização dos conceitos de “longa duração” e “memória” e suas possibilidades de análise no âmbito do Serviço Social, constituem, portanto, o eixo de análise deste artigo.(1)


Aids, “longa duração” e “memória”

A análise histórica dos fatos tem conseguido ultrapassar o “tempo curto”, ou de uma sucessão de fatos situados apenas na amplitude de nossos olhos. Ou seja, o alcance dos elementos subjacentes aos fatos histórico-sociais tem sido contemplado pela chamada “nova história” através de um constante resgate da perspectiva histórica de longa duração ou como afirma Braudel (1992a:355): “É na massa inteira da história que realidades de “longa duração” impõem sua presença, sempre prontas para forçar o curso das coisas”. Neste sentido, a história apresenta-se como um testemunho de familiaridades que se ligam a “uma corrente de acontecimentos, de realidades subjacentes” (Braudel, 1992b: 45) e interligados um ao outro. Como exemplo significativo, uma análise do papel da história das instituições, religiões e civilizações revelariam muito menos novidades que conceberiam nossos historiadores do “tempo curto”, avançando-se em direção ao desvelamento de elementos subjacentes à uma história meramente factual e de uma dimensão estritamente particular.
A partir desta perspectiva de uma história cuja duração social apresenta-se como substrato da vida atual, pode-se reconhecer no (ad)evento da descoberta da AIDS, uma série de elementos que, se na origem da epidemia já traziam substantivos elementos históricos relacionados à homossexualidade, uso de drogas e prostituição , por outro lado pode afirmar que o motor da história reconduziu estes mesmos elementos, agora relacionados à uma doença sem cura e disseminada particularmente por via sexual, a novas análises e práticas correspondentes.
Um elemento imprescindível, quando se trata de enfatizar o processo de “longa duração” na epidemia de AIDS, é a memória, como depositária deste processo estrutural e, que assegura “ora o retraimento, ora o transbordamento” do tempo e da história, como recurso dos mecanismos de manipulação da memória coletiva” (Le Goff, 1994: 426). Cabe ressaltar que tais processos são sobremaneira potencializados pela revolução informacional, a qual a sociedade contemporânea tem testemunhado, e onde há uma reconfiguração dos limites de tempo e espaço que atravessam com imagens ou fisicamente (à longa distância e em curto período de tempo) uma memória outrora oral ou escrita.
Com relação à homossexualidade e seu peso histórico na constituição de uma “idéia” acerca da AIDS, a contribuição de Cerqueira e Mott (2002:49) é indispensável, tendo em vista a observância dos autores quanto à relação da homossexualidade com as grandes tragédias humanas, como a destruição de Sodoma e Gomorra, a queda do Império Romano, a destruição da ordem dos templários etc, além da disseminação da mais dramática epidemia mundial: a AIDS.
Portanto, termos como peste gay, câncer cor-de-rosa, ou a expressão mais estigmatizada e que denota as vítimas desta epidemia, aidético, conectam a “longa duração” e a memória, não só a elementos históricos longínquos, mas acrescidos de novos ditames históricos que já acompanhavam a homossexualidade antes do (ad)evento da AIDS.
No caso dos profissionais do sexo atingidos pela epidemia que estava por se instalar, infere-se que os códigos morais que, por séculos, acompanharam as práticas chamadas de prostituição, somente corroboraram a idéia de uma doença relacionada à “promiscuidade” sexual, o que vem sendo desconstruída hoje, devido ao alto índice de mulheres casadas e optantes pela monogamia, infectadas pelo HIV. Mesmo assim, reconhecem-se, ainda hoje, os efeitos da “longa duração” de elementos que acompanham a prática dos profissionais do sexo através dos tempos e que podem ser traduzidos em programas ou projetos que “tentam” tirar estas pessoas da prostituição.
Estas iniciativas, e este é um importante dado a ser analisado, podem estar relacionadas a uma dimensão moral, tendo em vista uma significativa participação das diversas religiões no contexto de respostas frente à AIDS, na medida em que os diferentes “mandatos ou vocações” das inúmeras denominações religiosas, especialmente as de origem judaico-cristãs, são acrescidos de variadas propostas de intervenção (Galvão, 1997:109).
Sendo assim, não se pode deixar de reconhecer o fenômeno religioso como um importante vetor de contribuição de uma “longa duração” de ditames morais e de uma propagação desta dimensão moral no âmbito da memória coletiva e que repercute não só contra o mercado de trabalho que envolve a prostituição, mas, também, em relação à homossexualidade e ao uso de drogas, a partir de juízos de valor.(2)
Quanto ao uso de drogas, pode-se inferir que fatores como leis que criminalizam o usuário em detrimento de políticas de enfrentamento como a distribuição de seringas descartáveis (redução de danos), bem como políticas de prevenção específicas, só para citar dois exemplos, já demonstram o quanto às realidades subjacentes a drogadição e que denotam a pluralidade do tempo social e seu caráter estrutural, podem determinar respostas eficazes à epidemia de AIDS.
A exata dimensão que se coloca à frente de nossos olhos, é que demandam, portanto, um desvelamento destas estruturas ou as “(…) permanências ou sobrevivências no imenso domínio cultural” (Braudel: 1992b: 50), social ou econômico, e que requerem, também, “uma renúncia da temporalidade linear em proveito dos tempos vividos múltiplos, nos níveis em que o individual se enraíza no social e no coletivo” (Le Goff: 1994: 473).
Cabe ressaltar que Braudel, ao sistematizar seu conceito de “longa duração”, mesmo em uma perspectiva que privilegia em determinados momentos, o determinismo geográfico, reconhece no pensamento de Marx a originalidade do que poderíamos chamar de análise estrutural, ultrapassando uma história que privilegia o tempo curto, avançando, ainda que de maneira limitada, em direção à categoria totalidade.
No que tange ao conceito de memória, de Le Goff, convém afirmar que pode-se perfeitamente relacioná-lo com o processo de produção de consciência da classe trabalhadora, conforme enunciado por Marx, uma vez que a memória para Le Goff e, conforme anteriormente sinalizado, pode ser um poderoso mecanismo de manipulação coletiva se utilizado por forças conservadoras.
Neste sentido, o diálogo com teóricos que podem ser considerados pela literatura marxiana e pela tradição marxista, como representantes científicos da classe burguesa, podem ter um reconhecimento também científico de suas análises acerca das realidades sócio-econômico-culturais, cabendo ao interlocutor superá-las, tanto a partir de uma teoria verdadeiramente crítica, quanto pela consciência de que “existem diferentes pontos de vista científicos que estão vinculados a diferentes pontos de vista de classe.” (Lowy, 1985: 104).
Sendo assim, defendo que as representações que temos acerca da AIDS, hoje, ainda guardam significativos elementos que surgiram nos primórdios da epidemia e que, lamentavelmente, reforçam preconceitos e estigmas vinculados a forças conservadoras e retrógradas, que por sua vez geram atitudes individuais e coletivas excludentes.
(1) Segundo revela o artigo de Olívia Pavani Naveira, Fernand Braudel e Jacques Le Goff situam-se entre os autores da chamada Escola dos Annales, cujas propostas encontram-se em dois eixos centrais que são a reinvindicação de uma história experimental científica e a convicção de uma unidade em construção entre a História e as Ciências Sociais. Delimita-se , assim, como objetivo primordial tirar a História de seu isolamento disciplinar, liberando-a para envolver-se em temáticas e metodologias existentes em outras disciplinas, revelando a intenção de fazer uma história de caráter interdisciplinar. Cabe ressaltar uma importante diferença entre a referida escola e o marxismo utópico, tendo em vista que não existe nos Annales uma teoria de transformação social e de luta de classes. O “evento’ histórico, nesta pespectiva, não é, portanto, ruptura, transformação profunda e estrutural. NAVEIRA, Olívia Pavani. “Os Annales e as suas influências com as ciências sociais”. www.klepsidra.net – acesso em 16/06/2006.
(2) Os hemofílicos também foram identificados como potenciais portadores do vírus HIV, em uma época em que o sangue, proveniente dos bancos de sangue particulares, eram de qualidade estritamente duvidosa, tendo um controle quase nulo do Estado sobre as referidas práticas. O diferencial desta população, é que frente à opinião pública, eram considerados “vítimas inocentes” da infecção pelo HIV. PARKER, Richard. A Construção da Solidariedade. AIDS, sexualidade e política no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992: 35.

Bibliografia
BRAUDEL, Fernand. Reflexões Sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1992b.
__________. História e Ciências Sociais: a longa duração. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1992a.
CERQUEIRA, Marcelo e MOTT, Luiz. AIDS e suas Interfaces com a Violência. Mimeo, 1999.
COUTINHO, Carlos Nelson. “Pluralismo: dimensões teóricas e políticas”. In Cadernos ABESS, n.4. São Paulo: Ed. Cortez, 1991.
GALVÃO, Jane. “As respostas religiosas frente à epidemia de HIV/AIDS no Brasil In Parker, Richard (org). Políticas, Instituições e Aids: enfrentando a epidemia no Brasil”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, ABIA, 1997.
.LE GOFF, Jacques. Memória, história e memória. Campina: Ed, UNICAMP, 1994.

As paradas gays e o marasmo existencial


Aconteceu no último dia 23 de novembro, a terceira parada gay da Zona Leste de São Paulo. Acho que é a temporão. Não me surpreendi com a data. Há muito tempo o dia 28 de junho (Dia Internacional do Orgulho Gay) deixou de ser uma referência para os eventos da militância LGBTTS. Isso se deve a vários motivos. Mas o principal, considero, são as especificidades de cada lugar onde ocorre parada. Estas especificidades relacionam-se, em primeiro lugar, à boa vontade e interesse das autoridades em liberar o espaço onde vai ocorrer o evento (em geral a avenida mais movimentada da cidade ou bairro). Como as paradas ultimamente viraram um grande celeiro de votos, o dilema é quase sempre resolvido.
Outra especificidade está ligada aos patrocínios e apoios. Tendo em vista que a população alvo mostra-se extremamente consumidora, os apoios acabam surgindo (boates, sites de relacionamento, saunas, além do imprescindível apoio público), viabilizando apoio logístico/estrutural. Considero este o mais importante. Não consigo imaginar uma parada LGBTTS sem os famosos trios elétricos, e que transformam um evento pretensamente político em um grande micareta. Claro que o teor político das paradas está capengando, mas não se pode negar que nunca, o chamando movimento gay, teve tanta visibilidade, mesmo que às custas de matérias sensacionalistas e ridículas. Mas voltemos às especificidades. Talvez o menos preponderante para a viabilização destas manifestações seja as diferenças que encontramos dentro do próprio movimento. Como se pode observar, está cada vez mais nítida uma grande cisão entre o que chamamos genericamente de homossexuais. Nesta imensa fauna de indivíduos ávidos por igualdade podemos distinguir um grande espectro de sexualidades e seus comportamentos correlatos, o que transforma as paradas gays em um grande espetáculo, que faz jus ao seu símbolo maior: o arco-íris. Temos hoje como representantes desses matizes entendidos, travestis, transexuais, bichas-loucas, boysinhos, barbies, caminhoneiras, lesbian-chics, gilettes etc, etc... É muita informação, acreditem. E essa é a riqueza que guarda cada parada gay. Dependendo do lugar onde ocorrem, esses personagens da vida real aparecem com mais ou menos intensidade ou quantidade, caracterizando de maneira explícita o modus vivendi de cada território. Traduzindo: a forma como a população GLBTT é tratada ou vista pelo local.
As paradas surgem, portanto, como uma alternativa (legítima) ao marasmo da cidade/localidade, o que faz com que a relação gay-alegria se acentue. Se isso é uma estratégia, eu não sei. Mas acredito tratar-se de uma faca de dois gumes, que pode voltar em forma de estigma e exigências estapafúrdias (todo gay tem a obrigação de estar alegre). Mas a estratégia anti-marasmo está dentro de um contexto maior. Trata-se de uma tendência global, que Guy Debord chamou há quatro décadas atrás de “sociedade do espetáculo”: “Nosso tempo, sem dúvida... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser”, afirma o pensador. Nessa lógica, as micaretas gays cumprem bem seu mandato, quebrando o marasmo social. Espero que quebrem, também, o marasmo existencial de milhares de homens e mulheres, que continuam, por motivos de ordem estritamente pessoal, a reprimir seus desejos mais intensos.