segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Ultima Parada - 174


Grande parte do sucesso do cinema nacional, na atualidade, deve-se à descoberta do filão violência – injustiça social (Pixote, Cidade de Deus, Tropa de Elite, etc). Como outrora tivemos o filão da sexualidade gratuita, principalmente nas comédias de mau gosto da Boca do Lixo, hoje enveredamos por um esforço de reflexão sobre a questão social, que constrói homens, mulheres e crianças desafortunados e engolidos por um sistema cruel e desigual. Digo que é um esforço, porque o compromisso de um filme com o orçamento de “Ultima parada – 174”, que estreiou no último dia 24, justifica-se pela necessidade de fazer com que milhões de pessoas assistam a película. Isso implica em um certo compromisso com a grande indústria cinematográfica, sem dúvida. Em síntese: deve render dindim e prêmios. O Filme de Bruno Barreto mostra-se competente nisso e merece ser visto, não só pelo esforço reflexivo e capricho da direção, mas principalmente pelas excelentes atuações (destaco Cris Vianna, Michel Gomes e Marcello Melo).
Impossível não fazer comparação com o documentário de José Padilha (Ônibus 174), mas trata-se de uma outra proposta. O filme de Barreto traz elementos que conseguem aglutinar um bom roteiro (Mauro Mantovani), crítica social, boa qualidade, alto orçamento e um lançamento competente (Globo Filmes, Moonshot Pictures, Movie & Art, Paramount Pictures -135 cópias), sem a pieguice que às vezes impregna filmes com proposta social. Apesar de a sinopse dizer tratar-se de um filme “sobre a natureza humana” e não sobre os problemas sociais brasileiros, fica impossível não associar as misérias humanas ao que as determinam: as condições desumanas de vida. O filme consegue trazer à tona a velha discussão que sempre lança a pergunta: de onde surgem os atos ilícitos praticados por crianças e adolescentes? Sem dúvida fica claro, muitas vezes no filme, tratar-se de um grande esquema que suga destes jovens suas potencialidades criativas e de vida. Como pode uma criança sobreviver a condições subumanas de vida, sem que isso não as tornem frias... agressivas? Não me parece possível estabelecer um corte entre o indivíduo e a sociedade que o constrói. Esse é o grande mérito do filme. Consegue estabelecer de forma competente um elo entre o particular e a estrutura onde esse particular está inserido. E Barreto não mede esforços para que tal conexão seja feita. Utiliza-se de muitos elementos simbólicos do que eu, particularmente, chamo de luta de classes: a mãe viciada que perde seu filho para o bandido da favela, o filho que cresce nas mãos do bandido perigoso da favela, o filho que se torna um bandido, a mãe convertida e arrependida que procura o filho perdido, sexo entre meninos e meninas em situação de rua, a heroína de classe média da ONG, que dá murros em ponta de faca, a truculência policial, pobreza, desigualdade, revolta e por aí vai. Fora estes jargões da ficção engajada, o filme consegue manter uma crítica interessante ao que chamamos de desigualdade social e, ainda assim, falar de questões da ordem do particular, do indivíduo, da natureza humana. Escorrega em alguns exageros, como o caso da estagiária no ônibus que, alheia ao que está acontecendo, tenta justificar um atraso para o chefe, diante de uma arma em suas fuças. Mas tudo bem... nada é perfeito. O filme vale a pena ser visto, pela coragem de mostrar que, qualquer criança ou adolescente que tenha passado pelas humilhações pelas quais passaram os muitos Sandros, poderiam ter seu dia de fúria. Tomara que o filme consiga convencer-nos de que a violência, praticada por crianças e adolescentes infratores, é infinitamente menor que a violência que sofreram durante toda a vida.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Eloá e a violência de gênero




Esperei passar um pouco a comoção para escrever sobre o caso Eloá. Assassinatos de mulheres sempre mexem comigo. Minha biografia, de certa forma, está vinculada ao feminismo. Sou filho de uma mulher forte e vencedora, o que não foi o suficiente para cortar bons dobrados nas mãos dos homens. Isso gerou elementos críticos em minha consciência, a ponto de militar em uma causa que aparentemente não é minha. Uma causa cujo discurso oficial dá como perdida, todas as vezes que aparecem na mídia casos como o de Eloá.
O que mais me revoltou nesse triste episódio, fora o assassinato propriamente dito, foi a forma como agiu a polícia, que a todo momento parecia querer justificar a violência praticada pelo assassino. Como se estivesse autorizando (porque vem de autoridades constituídas) a todo o momento, o seqüestrador a, em nome de um suposto amor, praticar tal ato de violência. O pior dessa estória, é que tal justificativa se dá sob uma nova roupagem, travestida de um psicologismo barato, e com o suposto objetivo de salvar a todos. De fato todos foram salvos. Menos a grande vítima: Eloá. A velha roupagem deste crime é o nosso velho conhecido crime passional. Em poucas palavras: um homem traído, violentado em sua masculinidade, seduzido pelos terríveis atributos de “Eva”, pode tudo, inclusive maltratar, violentar, matar... E isso se justifica porque cabe a mulher cumprir de forma exemplar seu destino de perfeita. As mulheres não podem ter desejo e quando ousam usar de uma transgressora liberdade podem ser (e quase sempre o são), punidas. Liberdade para as mulheres ainda implica em sanções. Como ousa uma mulecota de 15 anos terminar com um homem de 22, arrumar um outro namoradinho e sair ilesa dessa estória? Não pode! O coitado tinha de surtar! Essa foi a impressão que tive, com a história oficial que me estava sendo narrada, tanto pela polícia, quanto por parte da imprensa sensacionalista. Isso me entristece, pois parece que foi estéril o esforço de feministas na década de 70, que picharam os muros das grandes capitais, com a palavra de ordem “Quem ama não mata”. O sangue de Ângela Diniz parece não ter sido suficiente para desmontar a farsa do homem vítima da mulher devoradora, a qual cabe a justiça feita pelas próprias mãos. Décadas mais tarde, Maria da Penha Maia quebrou o silêncio de anos de violência praticada por seu marido, dando origem a lei que leva o seu nome. Importante passo para a criminalização de atos de violência contra a mulher. Mas esses fatos históricos e dolorosos, além de todos aqueles que carecem de visibilidade, mas que estão presentes em nosso cotidiano, parecem não ter sido suficientes para fazer com que os crimes praticados em decorrência do gênero sejam tratados com rigor. Tenho a nítida impressão de que se Eloá não tivesse sido morta, a possibilidade de o assassino ser perdoado pela opinião pública, e quiçá pela justiça, seria grande. O que não entra em minha cabeça é a mistura que faz entre ser honesto (trabalhador!) e mau caráter, machista. Por isso, nós homens, temos de entrar nessa luta da violência contra as mulheres. O que ocorreu em Santo André foi um caso de violência de gênero. Não o caso de violência de um homem trabalhador apaixonado e obsecado, contra a adolescente sedutora e alegre. Foi um caso que se perpetua sob novas roupagens e que dão origem a inúmeras formas de violência contra a mulher, cujas sutilezas não permitem que as identifiquemos como parte da problemática de gênero.