terça-feira, 2 de dezembro de 2008

A AIDS E OS EFEITOS DA “LONGA DURAÇÃO” E DA MEMÓRIA



Como tradicionalmente acontece no dia 1º de dezembro, o mundo volta-se (cada vez menos, é verdade) para reflexões acerca da AIDS. Como fenômeno histórico e imerso no caldo cultural da glogalização, acho oportuno fazer algumas considerações sobre o que considero como determinantes para que algumas questões, de ordem moral e religiosa, ainda persigam a AIDS.
O início oficial AIDS, na década de 1980, trouxe à tona uma série de questões que, relacionadas a uma doença sem cura, potencializou um debate acerca do que, comumente, chamamos de preconceito. Temas antes debatidos e polarizados através de grupos progressistas e conservadores, geralmente situados no âmbito das ciências sociais e humanas mas, também, inseridos na moral religiosa, agora encontravam-se envolvidos no mundo da ciência natural, em especial na medicina, que anunciava aos quatro ventos a descoberta de uma doença incurável.
As particularidades que cercaram (e ainda cercam) a AIDS residem no fato desta estar relacionada a minorias historicamente discriminadas e ser, dentro de uma definição médica, uma doença sexualmente transmissível.
Estas duas particularidades, logo identificadas pela comunidade científica, geraram, ao longo destas duas últimas décadas, um vigoroso debate que trouxe à tona a chamada dimensão social da epidemia. Não que as outras doenças já existentes também não a tivessem, mas o binômio AIDS-morte e sua relação com grupos de homossexuais, usuários de drogas (injetáveis) e profissionais do sexo, bem como a relação de todos estes elementos com a prática sexual, revelou-se um emaranhado de análises que conduziram, inclusive, às primeiras medidas de enfrentamento da doença, sejam elas governamentais ou não governamentais. As duas particularidades enunciadas e sua presença consciente ou inconsciente, sejam no senso comum ou no discurso científico, podem ser definidas como um processo de elementos de “longa duração” que acompanham a AIDS desde os primórdios, infiltrando-se na memória coletiva, ainda que sendo parte de uma história considerada recente, como a da epidemia de AIDS. A problematização dos conceitos de “longa duração” e “memória” e suas possibilidades de análise no âmbito do Serviço Social, constituem, portanto, o eixo de análise deste artigo.(1)


Aids, “longa duração” e “memória”

A análise histórica dos fatos tem conseguido ultrapassar o “tempo curto”, ou de uma sucessão de fatos situados apenas na amplitude de nossos olhos. Ou seja, o alcance dos elementos subjacentes aos fatos histórico-sociais tem sido contemplado pela chamada “nova história” através de um constante resgate da perspectiva histórica de longa duração ou como afirma Braudel (1992a:355): “É na massa inteira da história que realidades de “longa duração” impõem sua presença, sempre prontas para forçar o curso das coisas”. Neste sentido, a história apresenta-se como um testemunho de familiaridades que se ligam a “uma corrente de acontecimentos, de realidades subjacentes” (Braudel, 1992b: 45) e interligados um ao outro. Como exemplo significativo, uma análise do papel da história das instituições, religiões e civilizações revelariam muito menos novidades que conceberiam nossos historiadores do “tempo curto”, avançando-se em direção ao desvelamento de elementos subjacentes à uma história meramente factual e de uma dimensão estritamente particular.
A partir desta perspectiva de uma história cuja duração social apresenta-se como substrato da vida atual, pode-se reconhecer no (ad)evento da descoberta da AIDS, uma série de elementos que, se na origem da epidemia já traziam substantivos elementos históricos relacionados à homossexualidade, uso de drogas e prostituição , por outro lado pode afirmar que o motor da história reconduziu estes mesmos elementos, agora relacionados à uma doença sem cura e disseminada particularmente por via sexual, a novas análises e práticas correspondentes.
Um elemento imprescindível, quando se trata de enfatizar o processo de “longa duração” na epidemia de AIDS, é a memória, como depositária deste processo estrutural e, que assegura “ora o retraimento, ora o transbordamento” do tempo e da história, como recurso dos mecanismos de manipulação da memória coletiva” (Le Goff, 1994: 426). Cabe ressaltar que tais processos são sobremaneira potencializados pela revolução informacional, a qual a sociedade contemporânea tem testemunhado, e onde há uma reconfiguração dos limites de tempo e espaço que atravessam com imagens ou fisicamente (à longa distância e em curto período de tempo) uma memória outrora oral ou escrita.
Com relação à homossexualidade e seu peso histórico na constituição de uma “idéia” acerca da AIDS, a contribuição de Cerqueira e Mott (2002:49) é indispensável, tendo em vista a observância dos autores quanto à relação da homossexualidade com as grandes tragédias humanas, como a destruição de Sodoma e Gomorra, a queda do Império Romano, a destruição da ordem dos templários etc, além da disseminação da mais dramática epidemia mundial: a AIDS.
Portanto, termos como peste gay, câncer cor-de-rosa, ou a expressão mais estigmatizada e que denota as vítimas desta epidemia, aidético, conectam a “longa duração” e a memória, não só a elementos históricos longínquos, mas acrescidos de novos ditames históricos que já acompanhavam a homossexualidade antes do (ad)evento da AIDS.
No caso dos profissionais do sexo atingidos pela epidemia que estava por se instalar, infere-se que os códigos morais que, por séculos, acompanharam as práticas chamadas de prostituição, somente corroboraram a idéia de uma doença relacionada à “promiscuidade” sexual, o que vem sendo desconstruída hoje, devido ao alto índice de mulheres casadas e optantes pela monogamia, infectadas pelo HIV. Mesmo assim, reconhecem-se, ainda hoje, os efeitos da “longa duração” de elementos que acompanham a prática dos profissionais do sexo através dos tempos e que podem ser traduzidos em programas ou projetos que “tentam” tirar estas pessoas da prostituição.
Estas iniciativas, e este é um importante dado a ser analisado, podem estar relacionadas a uma dimensão moral, tendo em vista uma significativa participação das diversas religiões no contexto de respostas frente à AIDS, na medida em que os diferentes “mandatos ou vocações” das inúmeras denominações religiosas, especialmente as de origem judaico-cristãs, são acrescidos de variadas propostas de intervenção (Galvão, 1997:109).
Sendo assim, não se pode deixar de reconhecer o fenômeno religioso como um importante vetor de contribuição de uma “longa duração” de ditames morais e de uma propagação desta dimensão moral no âmbito da memória coletiva e que repercute não só contra o mercado de trabalho que envolve a prostituição, mas, também, em relação à homossexualidade e ao uso de drogas, a partir de juízos de valor.(2)
Quanto ao uso de drogas, pode-se inferir que fatores como leis que criminalizam o usuário em detrimento de políticas de enfrentamento como a distribuição de seringas descartáveis (redução de danos), bem como políticas de prevenção específicas, só para citar dois exemplos, já demonstram o quanto às realidades subjacentes a drogadição e que denotam a pluralidade do tempo social e seu caráter estrutural, podem determinar respostas eficazes à epidemia de AIDS.
A exata dimensão que se coloca à frente de nossos olhos, é que demandam, portanto, um desvelamento destas estruturas ou as “(…) permanências ou sobrevivências no imenso domínio cultural” (Braudel: 1992b: 50), social ou econômico, e que requerem, também, “uma renúncia da temporalidade linear em proveito dos tempos vividos múltiplos, nos níveis em que o individual se enraíza no social e no coletivo” (Le Goff: 1994: 473).
Cabe ressaltar que Braudel, ao sistematizar seu conceito de “longa duração”, mesmo em uma perspectiva que privilegia em determinados momentos, o determinismo geográfico, reconhece no pensamento de Marx a originalidade do que poderíamos chamar de análise estrutural, ultrapassando uma história que privilegia o tempo curto, avançando, ainda que de maneira limitada, em direção à categoria totalidade.
No que tange ao conceito de memória, de Le Goff, convém afirmar que pode-se perfeitamente relacioná-lo com o processo de produção de consciência da classe trabalhadora, conforme enunciado por Marx, uma vez que a memória para Le Goff e, conforme anteriormente sinalizado, pode ser um poderoso mecanismo de manipulação coletiva se utilizado por forças conservadoras.
Neste sentido, o diálogo com teóricos que podem ser considerados pela literatura marxiana e pela tradição marxista, como representantes científicos da classe burguesa, podem ter um reconhecimento também científico de suas análises acerca das realidades sócio-econômico-culturais, cabendo ao interlocutor superá-las, tanto a partir de uma teoria verdadeiramente crítica, quanto pela consciência de que “existem diferentes pontos de vista científicos que estão vinculados a diferentes pontos de vista de classe.” (Lowy, 1985: 104).
Sendo assim, defendo que as representações que temos acerca da AIDS, hoje, ainda guardam significativos elementos que surgiram nos primórdios da epidemia e que, lamentavelmente, reforçam preconceitos e estigmas vinculados a forças conservadoras e retrógradas, que por sua vez geram atitudes individuais e coletivas excludentes.
(1) Segundo revela o artigo de Olívia Pavani Naveira, Fernand Braudel e Jacques Le Goff situam-se entre os autores da chamada Escola dos Annales, cujas propostas encontram-se em dois eixos centrais que são a reinvindicação de uma história experimental científica e a convicção de uma unidade em construção entre a História e as Ciências Sociais. Delimita-se , assim, como objetivo primordial tirar a História de seu isolamento disciplinar, liberando-a para envolver-se em temáticas e metodologias existentes em outras disciplinas, revelando a intenção de fazer uma história de caráter interdisciplinar. Cabe ressaltar uma importante diferença entre a referida escola e o marxismo utópico, tendo em vista que não existe nos Annales uma teoria de transformação social e de luta de classes. O “evento’ histórico, nesta pespectiva, não é, portanto, ruptura, transformação profunda e estrutural. NAVEIRA, Olívia Pavani. “Os Annales e as suas influências com as ciências sociais”. www.klepsidra.net – acesso em 16/06/2006.
(2) Os hemofílicos também foram identificados como potenciais portadores do vírus HIV, em uma época em que o sangue, proveniente dos bancos de sangue particulares, eram de qualidade estritamente duvidosa, tendo um controle quase nulo do Estado sobre as referidas práticas. O diferencial desta população, é que frente à opinião pública, eram considerados “vítimas inocentes” da infecção pelo HIV. PARKER, Richard. A Construção da Solidariedade. AIDS, sexualidade e política no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992: 35.

Bibliografia
BRAUDEL, Fernand. Reflexões Sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1992b.
__________. História e Ciências Sociais: a longa duração. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1992a.
CERQUEIRA, Marcelo e MOTT, Luiz. AIDS e suas Interfaces com a Violência. Mimeo, 1999.
COUTINHO, Carlos Nelson. “Pluralismo: dimensões teóricas e políticas”. In Cadernos ABESS, n.4. São Paulo: Ed. Cortez, 1991.
GALVÃO, Jane. “As respostas religiosas frente à epidemia de HIV/AIDS no Brasil In Parker, Richard (org). Políticas, Instituições e Aids: enfrentando a epidemia no Brasil”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, ABIA, 1997.
.LE GOFF, Jacques. Memória, história e memória. Campina: Ed, UNICAMP, 1994.

Um comentário:

oscar luiz disse...

Muito bom o artigo,parabéns! Só sugiro na próxima uma linguagem mais acessível a todas as classes,pois de certa forma ele fica restrito à classe acadêmica. Beijos Oscar.