domingo, 14 de dezembro de 2008

100 anos de Burle Marx


“O território é o dado essencial da vida cotidiana”, já dizia o grande geógrafo Milton Santos. Eu humildemente acrescentaria, já que as idéias deste gênio levam a tal conclusão, essencial da vida humana. Aquela que pulsa entre as ruas e avenidas, aparentemente dispostas pelo destino imposto por engenheiros e arquitetos. O grande geógrafo enunciava que a noção de espaço é indivisível dos seres humanos que o habitam, e estes o modificam todos os dias. Sendo assim o território envolve, ao mesmo tempo, forma e função. Trata-se, assim, de uma construção simbólica coletiva, contínua e cotidiana, operada por todos nós, que habitamos nosso território. Talvez por isso seja preciso generosidade ao lidarmos com espaço onde estamos inseridos. Uma generosidade que passa pela forma como olhamos para esse espaço, interferimos nesse espaço e principalmente, como o preparamos para gerações futuras. Fernando Pessoa dizia que “os deuses são deuses porque não se pensam”. Se pensar, ou pensarmos diariamente como estamos lidando com nossas condições objetivas e subjetivas de vida, significa resgatar nossa condição humana de forma coletiva. Afinal, como diria Hanna Arendt, "Quem habita este planeta não é o Homem, mas os homens”.
Foi pensando nisso que percorri com entusiasmo a exposição (gratuita!) do Paço Imperial, em comemoração aos 100 anos de nascimento Roberto Burle Marx. O que se expõe é a materialização da generosidade de um homem, em relação ao espaço em que viveu, e no qual vivemos nós, agora.
A exposição revela um Burle Marx que poucos conhecem. Pintor, desenhista, escultor, cronista, cenógrafo, músico e joalheiro, o homem que conhecemos como paisagista usou a arte como mediadora para concretização de um sonho. Tornar pleno de luz, cor e beleza, o que antes poderia ter como destino o concreto armado, foi seu grande desafio.
Herdeiro do modernismo, Burle Marx usou e abusou do cubismo e do abstracionismo em prol de projetos visuais singulares e modernos. O que parecia impossível diante de fortes influências européias (em especial a inglesa e francesa), se tornou viável diante do investimento em uma arte voltada para as especificidades brasileiras e tropicais. Por isso, Lauro Cavalcante, curador da exposição, inclui o artista entre o que chama de “artistas totais”. Aqueles a quem o destino reserva a árdua tarefa de fazer a intercessão entre as artes e o espaço territorial. E é isso que vemos na exposição.
No térreo já podemos encontrar um belo jardim, projeto para a área interna do Museu Nacional de Belas Artes (RJ). No primeiro pavimento, ao som de Schubert, Mahler, Brahms e Beethoven (seus compositores prediletos), nos deparamos com lindos painéis de tecidos. O pincel de Burle Marx também revela um artista preocupado com o todo, ou como disse Mário Pedrosa já em 1958 no Jornal do Brasil: “ Os pincéis de Burle Marx são ditados para um pensamento sintético, que leva cada detalhe a participar da idéia do todo (...). E o próprio esquema de cores não é mais independente, produto do mero gosto impressionista do pintor. Agora (com Burle Marx) tudo é forma, espaço.
E haja espaço para tanta arte e sensibilidade. Estão expostos na antiga casa real, projetos famosos de paisagismo no Brasil, como o do Aterro do Flamengo (RJ), Parque da Pampulha (BH), Palácio Gustavo Capanema (Ministério da Educação – RJ), Parque do Ibirapuera (SP), e internacionais como o da Praça Rosa de Luxemburgo (Berlim). Esses projetos revelam uma quase obsessão pela beleza, aliada à funcionalidade. Ou como disse o próprio Burle Marx: “Em relação à minha vida de artista plástico, da mais rigorosa formação disciplinar para o desenho e a pintura, o jardim foi, de fato, uma sedimentação de circunstâncias. Foi somente o interesse de aplicar sobre a própria natureza os fundamentos da composição plástica de acordo com sentimento estético de minha época.” E assim, o artista inseriu em suas paisagens criadas, a antes negligenciada flora brasileira.
Trata-se de um privilégio para nossa cidade abrigar uma exposição desse porte, não somente pela qualidade e organização, mas porque o Rio foi a terra na qual viveu esse paulista generoso, capaz de pensar a vida cotidiana e o espaço no qual vivemos, como arte.

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