domingo, 22 de fevereiro de 2009

Sobre o corpo e suas possíveis leituras...


Já faz algum tempo que tenho me debruçado sobre as questões que envolvem a estética corporal. Isso não por acaso. Numa cidade como o Rio de Janeiro, onde as práticas corporais alcançam o status de obrigação, entendo que se faz necessário um cabedal de reflexões sobre os limites e as possibilidades de vida que envolve a busca de um corpo perfeito. Há outro ambiente mais propício que os eventos momescos?
Outro estímulo (ou consequência) para alimentar tal interesse acadêmico foi a recente pesquisa que realizei com mulheres soropositivas, em um ambulatório de HIV/AIDS de um hospital geral da zona portuária do Rio de Janeiro. Tal investigação, como parte das reflexões de minha Dissertação de Mestrado, evidencia um importante processo de autoexclusão da esfera da sociabilidade, em função das mudanças corporais acarretadas pelo uso contínuo de medicamentos antiaids. Nesta pesquisa constatou-se, além das importantes perdas acarretadas pela AIDS e suas consequências biopsíquicas, perdas objetivas com significativos rebatimentos nas condições concretas de vida, dentre elas o acesso ao trabalho, propiciadas, entre outras coisas, pelo afastamento do ideal de beleza contemporâneo.
Se as mulheres que carregam o vírus daquela que é considerada a epidemia do século se inserem nessa lógica cruel de idealização da beleza, com outras mulheres ocorre um processo similar, se considerarmos o fenômeno de massa que envolve a construção destes ideais.
Em minhas reflexões tenho utilizado algumas autoras que têm se dedicado a uma crítica responsável, porém contundente, a forma como tem se manifestado o desejo pelo alcance do corpo perfeito. A partir das reflexões da antropóloga Miriam Goldenberg (IFICS) e da psicóloga Júnia Vilhena de Novaes (PUC-Rio) pude ter acesso a autores clássicos na reflexão daquilo que passamos a chamar, de forma reducionista, de “ditadura da beleza”. Questões como obesidade, corpos sarados e envelhecimento e aparência saudável, tomam um formato capaz de tecer um importante retrato da cultura brasileira nas últimas décadas, cujos moldes apontam para o crescimento exacerbado das academias de ginástica, o consumo de produtos de beleza e rejuvenescimento, cirurgias plásticas, além das dietas milagrosas e perigosas.
Miriam Goldenberg, em recente artigo, defende que o corpo na sociedade contemporânea é um capital, que, além da significação ligada ao exercício do trabalho, é percebido como um importante vetor de ascensão social. Ou seja, um corpo belo, magro e jovem torna aquele que o possui alguém dotado de superioridade, porque conquistado por meio de investimento, trabalho e sacrifício. Sendo assim, a antropóloga assinala, a partir das idéias do sociólogo francês Pierre Bourdieu, que o capital na contemporaneidade tornou-se mais fluido, de forma a abranger aspectos como o econômico, cultural, social, político, simbólico... e físico.
Tal relação da superioridade com o ideal de corpo perfeito sugere uma posição de distinção diante daqueles que não conseguem alcançá-lo. Tal prerrogativa de aceitação e exigência torna-se complexa e cruel, se levarmos em conta que os atributos idealizados tornam-se naturalizados e não encarados como um construto de uma determinada época e contexto histórico. Sendo assim, a autora agrega em suas reflexões as ideias de Marcel Mauss, que sugere ser a “imitação prestigiosa” a alavanca dos desejos e da construção dos corpos e comportamentos correspondentes ao alcance desses ideais e relativos a um determinado tipo de sociedade. Sendo assim, a eleição de determinados modelos (atrizes, modelos, cantoras, atletas) ordena subjetivamente a imitação destes, que por sua vez promove uma falsa impressão do fácil alcance do sucesso.
A questão da feiúra tem sido um dos objetos de estudo de Junia de Vilhena. Não muito distante das discussões de Goldenberg, a autora reflete acerca da tirania do consumo, na busca de um corpo perfeito e distante do ideal de distanciamento da beleza. Sendo assim, é importante pensar que um ideal de beleza corresponde a um determinado ideal de feiúra, ditados por um mercado ávido por vender produtos milagrosos de beleza e “naturalmente necessários”. Talvez a grande contribuição de Vilhena seja o vislumbre de uma ameaça que paira sobre essa lógica, na medida em que esses ideais estéticos se aproximam de forma substantiva das teorias racistas que justificaram e ainda justificam as grandes atrocidades da humanidade. Sendo assim, nessa lógica, o gordo, além de feio, torna-se culturalmente dotado de características moralmente negativas, um atributo moral e não apenas biológico, porque ser magro tornou-se um valor social. Ainda utilizando-se a obesidade como exemplo, pode dizer que a gordura figura como um dos piores desleixos, que se traduz como um modo inadequado no lidar com o corpo. Tal processo geralmente causa, entre outras formas de exclusão, a lipofobia (horror à gordura), sintoma social que forja, entre outras coisas, a ideia de que se trata tão somente de uma questão de esforço pessoal e não um produto da natureza, muitas vezes relacionado com graves patologias. Sendo assim, nos deparamos com um conjunto de discursos que normalizam o corpo ideal: o científico, publicitário, tecnológico, médico e porque não dizer o filosófico que legitimam práticas de alcance a corpos considerados perfeitos, que longe de serem regras, são exceções. Ou alguém encontra com assiduidade, no meio da rua, corpos como o de Gisele Bündchen?
Desta forma, o esforço de inserção e alimentação dessa discussão, como sinaliza Vilhena, é o de superar a visão simplista, que reduz o cuidado do corpo ao narcisismo ou à alienação, o que sugere questões imersas no caldo cultural da globalização, do mundo do consumo e com repercussões na construção dos ideais estéticos de homens e mulheres e crianças.
Nesse sentido, fomentar um debate em torno dos ditames culturais em torno dos ideais de beleza, sinalizam uma responsabilidade com a vida. Ou é possível ignorar que tais questões acarretem que o cultural, com fenômeno socialmente construído, tenham repercussões no biológico? Um claro exemplo é a anorexia nervosa, distúrbio psiquiátrico, cujo uma das principais causas é uma preocupação exagerada com o peso corporal. Tal patologia reflete um desacordo entre a imagem corporal idealizada e a real ou possível de se alcançar, refletido diante de nossos olhos, no espelho. Isso faz com que faz com que uma das principais características desse distúrbio alimentar seja uma equivocada noção da imagem corporal, que leva a um verdadeiro autobiocote em termos de alimentação, acarretando, não raras vezes, a morte.
Voltarei a esse tema, não dividem, por considerar um das feridas narcísicas (me fazendo valer de um termo cunhado por Freud) da sociedade contemporânea.