
Fiquei surpreso com a notícia de que uma associação de deficientes visuais está preparando um protesto, no dia da estréia do filme “Ensaio Sobre a Cegueira” nos EUA. Segundo a matéria, veiculada no “GLOBO” no último dia 28 de setembro, a associação considerou ofensivo o tratamento dado à cegueira no filme de Fernando Meirelles. Quero deixar claro que sempre apostei no protagonismo dos movimentos sociais e considero legítimos os questionamentos do grupo americano. Só não concordo com o argumento de que são ofensivas e desrespeitosas as questões levantadas sobre a cegueira no filme. Sendo assim, coloco as seguintes questões:
Por que um protesto somente contra o filme e não contra o livro de José Saramago, que vendeu milhões de exemplares e do qual foi adaptado com absoluta fidelidade, o filme?
Será que o enfoque dado à cegueira foi devidamente compreendido? Uma cegueira que ultrapassa o físico e avança em direção ao simbólico?
O argumento de que há um cego de nascença, com atitudes éticas questionáveis, desqualificam todos os cegos? Ainda nessa lógica, o fato de ser cego garante que o indivíduo seja coerente e ético?
Por que um protesto somente contra o filme e não contra o livro de José Saramago, que vendeu milhões de exemplares e do qual foi adaptado com absoluta fidelidade, o filme?
Será que o enfoque dado à cegueira foi devidamente compreendido? Uma cegueira que ultrapassa o físico e avança em direção ao simbólico?
O argumento de que há um cego de nascença, com atitudes éticas questionáveis, desqualificam todos os cegos? Ainda nessa lógica, o fato de ser cego garante que o indivíduo seja coerente e ético?
Estas são questões com as quais me deparei quando li esta notícia.
O filme de Fernando Meirelles é simplesmente maravilhoso. Um soco no estômago, eu diria.
Em uma cidade não identificada começam a ocorrer casos de uma cegueira inexplicável, aparentemente contagiosa e que se manifesta através de uma nuvem leitosa. Os atingidos pela “cegueira branca”, identificados, são imediatamente encarcerados pelo Estado repressor em um espaço sem nenhuma estrutura. Nessa jornada, a mulher de um médico acometido pela repentina falta de visão, consegue romper o cerco do isolamento, sendo a única pessoa a enxergar, no grupo de cegos que aumenta a cada dia. Com o passar do tempo, afloram nesta estrutura improvisada e segregadora, os instintos mais animalescos. As necessidades básicas não satisfeitas fazem emergir os sentimentos mais obscuros e que, em condições normais, são encobertos pela civilidade gerenciada pelo “superego”.
O livro e o filme conseguem dar a exata dimensão de nossos limites éticos, diante das necessidades mais elementares de nossa existência. A fome, os preconceitos, os medos, a insegurança, o ódio, a cobiça... Estas são algumas das mazelas com as quais se depara nesse universo saramaguiano, tão próximo de nós. Até que ponto a cultura consegue escamotear nossos instintos soterrados em uma suposta civilidade? Será que em nosso dia-a dia, não criamos estratégias que encobrem atitudes animalescas e instintivas, porque justificadas por discursos oficiais religiosos, filosóficos ou científicos? E que, por isso mesmo, são legitimados em nosso dia-a dia? O fato é que a crise moral que se abate sobre os cegos de Saramago é uma crise que se observa na esfera do comum, do familiar... do banal. Por isso choca. Exatamente, porque nos identificamos com ela. A arte proporciona isto. A ficção se torna um espelho que quebraríamos, se fosse possível, por ser doloroso e difícil de se digerir, quando se reconhece nele, nosso próprio reflexo. A cegueira metafórica expressa no filme nos submete (ou deveria nos submeter) a um exame reflexivo de nossas atitudes diárias com o outro e, conseqüentemente, com nós mesmos, na medida em que existimos, também, a partir do outro. Mas nem tudo está perdido. A cegueira também é capaz de fazer com desperte o sentimento de humanidade. O sofrimento pode provocar o sentimento de alteridade. De se colocar no lugar do outro. A partir da dor dos outros, como diria Susan Sontag, podemos reconstruir nossa trajetória. Compreendo todos estes limites, não só por meio de nossas motivações individuais ou subjetivas, mas como parte de um sistema cruel, que aposta no individualismo, como fonte de sobrevivência de um capitalismo feroz e avassalador. Ensaio Sobre a Cegueira deixa claro que a solução reside no coletivo, ainda que devamos respeitar as individualidades.