quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Feliz 2009!


Ontem recebi uma ligação de uma pessoa a quem prezo muito. Trata-se de Gabriel, amigo que conheci quando morei e vivi dias maravilhosos na Espanha, país que aprendi a amar! Estudei com Gabriel na Universidade Autônoma de Madri, mais especificamente em uma disciplina que discutia as relações de gênero, ministrada por uma amiga em comum, Cristina Sánches Muñoz. Gabriel é uma pessoa especial. Logo nas primeiras semanas de aula fomos a um dos inúmeros cafés da universidade, o que fez que durante o curso levássemos para a sala de aula os papos acalorados que tínhamos durante um churro e outro. Isso fez, e honestamente é um mero detalhe nessa estória de amizade, que engrenássemos um namoro, que fez com que minha estada na capital espanhola se tornasse mais colorida e feliz! Viajamos pra caramba e aprendi com este espanhol de Villa Verde Alto, coisas que a universidade se recusa a ensinar: humildade intelectual e coragem de falar coisas que nem sempre a maioria, porque careta demais, gostaria de ouvir. Voltei para o Brasil e Gabriel, pouco depois, se casou com uma feminista judia, amiga em comum, e recentemente me disse ter se convertido ao islamismo, para desespero da mãe, católica ferrenha. Ruth Meyer, amiga e mulher de Gabriel, agora espera uma filha, que se chamará Raquel.
Na conversa de quase duas horas no MSN, em que conversamos sobre a vida e seus descompassos, este irmão me revelou a preocupação e responsabilidade em botar no mundo uma mulher. Como garantir a felicidade de um filho, perguntava? O que priorizar na educação? Como ensinar uma mulher a se proteger de um mundo ainda machista? Me recordo de, no Marrocos, numa atitude panfletária e juvenil, sairmos juntos catando o lixo que alguns turistas babacas jogavam no chão das medinas, só para provocar um debate sobre a consciência ecológica. Não fomos felizes nos debates provocados, mas éramos felizes por termos com quem compartilhar idéias e reflexões em meio à falta de consciência de pessoas que se dizem civilizadas. Gabriel me disse uma coisa que me emocionou: “quisera Alah prover para Rachel amigos como tu , para que pudesse se sentir amparada em momentos de reivindicação por civilidade e amor ao próximo”. Fiquei feliz e emocionado, embora ache, honestamente, que a pequena filha de meu amigo mereça coisa melhor! Ando menos panfletário, admito. Mas ainda acho que seja nossa maior responsabilidade SER alguém disponível, para que o outro se sinta acolhido em suas angústias e questionamentos. Isso não é fácil. É um exercício diário, de total desprendimento daquilo que levamos a vida inteira fazendo, alimentando nosso ego e nosso individualismo. Estar disponível, acredito, é estar aberto às diferenças, sabendo que o objetivo é ser igual no direito de viver com dignidade. Por isso procede e muito a preocupação de Gabriel. Afinal, o que estamos fazendo para que Raquel encontre um mundo melhor?
Honestamente penso que avancei um pouco, após 42 anos de vida, no sentimento de alteridade, de me colocar no lugar do outro, não por questões puramente religiosas, mas porque considero, sobretudo, uma atitude ética, onde o coletivo deve ser o fim, e não o meio para benefícios individuais. Talvez Gandhi tenha sido um dos maiores sábios do século passado, quando disse que devemos ser nós mesmos, a mudança que queremos para o mundo e assim, projetarmos no outro, esses avanços, em direção à um mundo justo e fraterno. Sei das dificuldades que isso envolve, mas pelo menos Gabriel pode continuar contando comigo para enfrentar àqueles que jogam no chão das medinas da vida sua falta de consciência. Isso já é um começo. Um bom começo também seria no dia-a-dia de nossas ações cotidianas e aparentemente banais: respeitarmos as filas, darmos lugar aos idosos nos coletivos, jogarmos lixo nas lixeiras, darmos bom dia aos vizinhos, ter uma atitude de carinho com o outro sempre que estivermos mal humorados, não termos sentimentos de vingança... definitivamente não é uma tarefa fácil. Mas refletir sobre isso, certamente fará com que amanhã avancemos em direção a um mundo melhor, onde a pena (o pior dos sentimentos, em minha opinião, porque nos coloca acima do outro, e não em condições de igualdade), dê lugar ao sentimento mais nobre que podemos ter: o amor.
No final de minha “terapia” com Gabriel, não pude deixar de perguntar por que este, casado com uma judia, não se converteu ao judaísmo, optando pelo islamismo. Meu amigo, quando achei que já tinha me ensinado o suficiente no último dia do ano, me respondeu: “Porque me converter ao islamismo pode me proporcionar exatamente o que desejo de uma relação: o respeito e a absoluta tolerância às diferenças. O que mais poderia ser um exemplo de amor para minha filha Raquel, do que isso?” Seja bem-vinda Raquel. Tio Dionísio já te ama profundamente.

FELIZ 2009!!!!!!!!!!!!!!!

domingo, 14 de dezembro de 2008

100 anos de Burle Marx


“O território é o dado essencial da vida cotidiana”, já dizia o grande geógrafo Milton Santos. Eu humildemente acrescentaria, já que as idéias deste gênio levam a tal conclusão, essencial da vida humana. Aquela que pulsa entre as ruas e avenidas, aparentemente dispostas pelo destino imposto por engenheiros e arquitetos. O grande geógrafo enunciava que a noção de espaço é indivisível dos seres humanos que o habitam, e estes o modificam todos os dias. Sendo assim o território envolve, ao mesmo tempo, forma e função. Trata-se, assim, de uma construção simbólica coletiva, contínua e cotidiana, operada por todos nós, que habitamos nosso território. Talvez por isso seja preciso generosidade ao lidarmos com espaço onde estamos inseridos. Uma generosidade que passa pela forma como olhamos para esse espaço, interferimos nesse espaço e principalmente, como o preparamos para gerações futuras. Fernando Pessoa dizia que “os deuses são deuses porque não se pensam”. Se pensar, ou pensarmos diariamente como estamos lidando com nossas condições objetivas e subjetivas de vida, significa resgatar nossa condição humana de forma coletiva. Afinal, como diria Hanna Arendt, "Quem habita este planeta não é o Homem, mas os homens”.
Foi pensando nisso que percorri com entusiasmo a exposição (gratuita!) do Paço Imperial, em comemoração aos 100 anos de nascimento Roberto Burle Marx. O que se expõe é a materialização da generosidade de um homem, em relação ao espaço em que viveu, e no qual vivemos nós, agora.
A exposição revela um Burle Marx que poucos conhecem. Pintor, desenhista, escultor, cronista, cenógrafo, músico e joalheiro, o homem que conhecemos como paisagista usou a arte como mediadora para concretização de um sonho. Tornar pleno de luz, cor e beleza, o que antes poderia ter como destino o concreto armado, foi seu grande desafio.
Herdeiro do modernismo, Burle Marx usou e abusou do cubismo e do abstracionismo em prol de projetos visuais singulares e modernos. O que parecia impossível diante de fortes influências européias (em especial a inglesa e francesa), se tornou viável diante do investimento em uma arte voltada para as especificidades brasileiras e tropicais. Por isso, Lauro Cavalcante, curador da exposição, inclui o artista entre o que chama de “artistas totais”. Aqueles a quem o destino reserva a árdua tarefa de fazer a intercessão entre as artes e o espaço territorial. E é isso que vemos na exposição.
No térreo já podemos encontrar um belo jardim, projeto para a área interna do Museu Nacional de Belas Artes (RJ). No primeiro pavimento, ao som de Schubert, Mahler, Brahms e Beethoven (seus compositores prediletos), nos deparamos com lindos painéis de tecidos. O pincel de Burle Marx também revela um artista preocupado com o todo, ou como disse Mário Pedrosa já em 1958 no Jornal do Brasil: “ Os pincéis de Burle Marx são ditados para um pensamento sintético, que leva cada detalhe a participar da idéia do todo (...). E o próprio esquema de cores não é mais independente, produto do mero gosto impressionista do pintor. Agora (com Burle Marx) tudo é forma, espaço.
E haja espaço para tanta arte e sensibilidade. Estão expostos na antiga casa real, projetos famosos de paisagismo no Brasil, como o do Aterro do Flamengo (RJ), Parque da Pampulha (BH), Palácio Gustavo Capanema (Ministério da Educação – RJ), Parque do Ibirapuera (SP), e internacionais como o da Praça Rosa de Luxemburgo (Berlim). Esses projetos revelam uma quase obsessão pela beleza, aliada à funcionalidade. Ou como disse o próprio Burle Marx: “Em relação à minha vida de artista plástico, da mais rigorosa formação disciplinar para o desenho e a pintura, o jardim foi, de fato, uma sedimentação de circunstâncias. Foi somente o interesse de aplicar sobre a própria natureza os fundamentos da composição plástica de acordo com sentimento estético de minha época.” E assim, o artista inseriu em suas paisagens criadas, a antes negligenciada flora brasileira.
Trata-se de um privilégio para nossa cidade abrigar uma exposição desse porte, não somente pela qualidade e organização, mas porque o Rio foi a terra na qual viveu esse paulista generoso, capaz de pensar a vida cotidiana e o espaço no qual vivemos, como arte.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Rebobine (e veja), por favor!!!


Poucas vezes ri tanto com um filme. Sou meio desconfiado com comédias americanas, mas tem uma galera fora do esquemão holywoodiano, a do baixo orçamento, que adoro. Incluo nesta seleta lista os filmes aparentemente babacas de Michel Gondry (Brilho eterno de uma mente sem lembranças). “Rebobine por favor” (Be Kind Rewind), que estreiou hoje, é hilário! Poucas vezes se pode ver um roteiro que prime pela originalidade e ao mesmo tempo divirta (quase mijei de tanto rir), sem subestimar a inteligência do espectador. O filme é engraçado sim, mas o pano de fundo é de uma ácida crítica aos blockbusters que arrecadam milhões de dólares, mas que na maioria das vezes não fazem pensar ou sequer divertem.
Pra começar, e até justificar tanto humor rasgado e o nonsense do filme, a história se passa, não em New York (onde se ambientam 9 entre 10 filmões americanos), mas no insípido, inodoro e incolor estado de New Jersey, parte dos fundos da cosmopolita NY. Bingo! Um filme que fala da possibilidade de fazer cinema sem dinheiro e que subverte a lógica das altas produções americanas, valorizando o trash o lema “ uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, não poderia ter sido mais feliz na escolha da locação.
O roteiro é despretensioso, mas genial. Seguinte: um tiozinho (Danny Glover), que tem uma locadora de filmes VHS, se vê em apuros quando a especulação imobiliária chega às suas portas. Um prédio bem velho (tipo Rio Antigo), onde supostamente viveu uma lenda do Jazz é seu único bem e fonte de sobrevivência. Na era dos DVDs ( que estavam começando à chegar), a pequena locadora vive às moscas, e o simpático tiozinho resolve reagir e investigar formas de modernizar seu negócio, prestes a falir. Desavisado, viaja, mas deixa o empreendimento nas mãos de dois malucos-beleza (Jack Black e Mos Def) que se vêem às voltas com uma acidental desmagnetização das fitas de vídeo. Isso basta para que, diante da necessidade de locar as fitas, resolvessem... REFILMAR, REPRODUZIR as películas!! Não, vocês não entenderam mal. As toscas criaturas resolveram colocar dentro das fitas, as suas versões trash de arraza-quarteirões como... Robocop, Caça-fantasmas, Conduzindo Miss Dayse, Hora do Rush, 2001 uma Odisséia no Espaço, O Rei Leão... e cujo o público, apaixonado pelas novas versões (suecadas), solicitassem. O auge da criatividade (ou desespero) fica por conta do momento em que os três, agora com a ajuda de uma outra criatura insana, têm a brilhante idéia de fazer as refilmagens com os próprios interessados, ou seja, os clientes da locadora. As cenas são tão hilárias e capazes de deixar Zé do Caixão ou Afonso Brazza com dores abdominais. Eu fiquei, e por isso recomendo. Diversão certa cambada!

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

A AIDS E OS EFEITOS DA “LONGA DURAÇÃO” E DA MEMÓRIA



Como tradicionalmente acontece no dia 1º de dezembro, o mundo volta-se (cada vez menos, é verdade) para reflexões acerca da AIDS. Como fenômeno histórico e imerso no caldo cultural da glogalização, acho oportuno fazer algumas considerações sobre o que considero como determinantes para que algumas questões, de ordem moral e religiosa, ainda persigam a AIDS.
O início oficial AIDS, na década de 1980, trouxe à tona uma série de questões que, relacionadas a uma doença sem cura, potencializou um debate acerca do que, comumente, chamamos de preconceito. Temas antes debatidos e polarizados através de grupos progressistas e conservadores, geralmente situados no âmbito das ciências sociais e humanas mas, também, inseridos na moral religiosa, agora encontravam-se envolvidos no mundo da ciência natural, em especial na medicina, que anunciava aos quatro ventos a descoberta de uma doença incurável.
As particularidades que cercaram (e ainda cercam) a AIDS residem no fato desta estar relacionada a minorias historicamente discriminadas e ser, dentro de uma definição médica, uma doença sexualmente transmissível.
Estas duas particularidades, logo identificadas pela comunidade científica, geraram, ao longo destas duas últimas décadas, um vigoroso debate que trouxe à tona a chamada dimensão social da epidemia. Não que as outras doenças já existentes também não a tivessem, mas o binômio AIDS-morte e sua relação com grupos de homossexuais, usuários de drogas (injetáveis) e profissionais do sexo, bem como a relação de todos estes elementos com a prática sexual, revelou-se um emaranhado de análises que conduziram, inclusive, às primeiras medidas de enfrentamento da doença, sejam elas governamentais ou não governamentais. As duas particularidades enunciadas e sua presença consciente ou inconsciente, sejam no senso comum ou no discurso científico, podem ser definidas como um processo de elementos de “longa duração” que acompanham a AIDS desde os primórdios, infiltrando-se na memória coletiva, ainda que sendo parte de uma história considerada recente, como a da epidemia de AIDS. A problematização dos conceitos de “longa duração” e “memória” e suas possibilidades de análise no âmbito do Serviço Social, constituem, portanto, o eixo de análise deste artigo.(1)


Aids, “longa duração” e “memória”

A análise histórica dos fatos tem conseguido ultrapassar o “tempo curto”, ou de uma sucessão de fatos situados apenas na amplitude de nossos olhos. Ou seja, o alcance dos elementos subjacentes aos fatos histórico-sociais tem sido contemplado pela chamada “nova história” através de um constante resgate da perspectiva histórica de longa duração ou como afirma Braudel (1992a:355): “É na massa inteira da história que realidades de “longa duração” impõem sua presença, sempre prontas para forçar o curso das coisas”. Neste sentido, a história apresenta-se como um testemunho de familiaridades que se ligam a “uma corrente de acontecimentos, de realidades subjacentes” (Braudel, 1992b: 45) e interligados um ao outro. Como exemplo significativo, uma análise do papel da história das instituições, religiões e civilizações revelariam muito menos novidades que conceberiam nossos historiadores do “tempo curto”, avançando-se em direção ao desvelamento de elementos subjacentes à uma história meramente factual e de uma dimensão estritamente particular.
A partir desta perspectiva de uma história cuja duração social apresenta-se como substrato da vida atual, pode-se reconhecer no (ad)evento da descoberta da AIDS, uma série de elementos que, se na origem da epidemia já traziam substantivos elementos históricos relacionados à homossexualidade, uso de drogas e prostituição , por outro lado pode afirmar que o motor da história reconduziu estes mesmos elementos, agora relacionados à uma doença sem cura e disseminada particularmente por via sexual, a novas análises e práticas correspondentes.
Um elemento imprescindível, quando se trata de enfatizar o processo de “longa duração” na epidemia de AIDS, é a memória, como depositária deste processo estrutural e, que assegura “ora o retraimento, ora o transbordamento” do tempo e da história, como recurso dos mecanismos de manipulação da memória coletiva” (Le Goff, 1994: 426). Cabe ressaltar que tais processos são sobremaneira potencializados pela revolução informacional, a qual a sociedade contemporânea tem testemunhado, e onde há uma reconfiguração dos limites de tempo e espaço que atravessam com imagens ou fisicamente (à longa distância e em curto período de tempo) uma memória outrora oral ou escrita.
Com relação à homossexualidade e seu peso histórico na constituição de uma “idéia” acerca da AIDS, a contribuição de Cerqueira e Mott (2002:49) é indispensável, tendo em vista a observância dos autores quanto à relação da homossexualidade com as grandes tragédias humanas, como a destruição de Sodoma e Gomorra, a queda do Império Romano, a destruição da ordem dos templários etc, além da disseminação da mais dramática epidemia mundial: a AIDS.
Portanto, termos como peste gay, câncer cor-de-rosa, ou a expressão mais estigmatizada e que denota as vítimas desta epidemia, aidético, conectam a “longa duração” e a memória, não só a elementos históricos longínquos, mas acrescidos de novos ditames históricos que já acompanhavam a homossexualidade antes do (ad)evento da AIDS.
No caso dos profissionais do sexo atingidos pela epidemia que estava por se instalar, infere-se que os códigos morais que, por séculos, acompanharam as práticas chamadas de prostituição, somente corroboraram a idéia de uma doença relacionada à “promiscuidade” sexual, o que vem sendo desconstruída hoje, devido ao alto índice de mulheres casadas e optantes pela monogamia, infectadas pelo HIV. Mesmo assim, reconhecem-se, ainda hoje, os efeitos da “longa duração” de elementos que acompanham a prática dos profissionais do sexo através dos tempos e que podem ser traduzidos em programas ou projetos que “tentam” tirar estas pessoas da prostituição.
Estas iniciativas, e este é um importante dado a ser analisado, podem estar relacionadas a uma dimensão moral, tendo em vista uma significativa participação das diversas religiões no contexto de respostas frente à AIDS, na medida em que os diferentes “mandatos ou vocações” das inúmeras denominações religiosas, especialmente as de origem judaico-cristãs, são acrescidos de variadas propostas de intervenção (Galvão, 1997:109).
Sendo assim, não se pode deixar de reconhecer o fenômeno religioso como um importante vetor de contribuição de uma “longa duração” de ditames morais e de uma propagação desta dimensão moral no âmbito da memória coletiva e que repercute não só contra o mercado de trabalho que envolve a prostituição, mas, também, em relação à homossexualidade e ao uso de drogas, a partir de juízos de valor.(2)
Quanto ao uso de drogas, pode-se inferir que fatores como leis que criminalizam o usuário em detrimento de políticas de enfrentamento como a distribuição de seringas descartáveis (redução de danos), bem como políticas de prevenção específicas, só para citar dois exemplos, já demonstram o quanto às realidades subjacentes a drogadição e que denotam a pluralidade do tempo social e seu caráter estrutural, podem determinar respostas eficazes à epidemia de AIDS.
A exata dimensão que se coloca à frente de nossos olhos, é que demandam, portanto, um desvelamento destas estruturas ou as “(…) permanências ou sobrevivências no imenso domínio cultural” (Braudel: 1992b: 50), social ou econômico, e que requerem, também, “uma renúncia da temporalidade linear em proveito dos tempos vividos múltiplos, nos níveis em que o individual se enraíza no social e no coletivo” (Le Goff: 1994: 473).
Cabe ressaltar que Braudel, ao sistematizar seu conceito de “longa duração”, mesmo em uma perspectiva que privilegia em determinados momentos, o determinismo geográfico, reconhece no pensamento de Marx a originalidade do que poderíamos chamar de análise estrutural, ultrapassando uma história que privilegia o tempo curto, avançando, ainda que de maneira limitada, em direção à categoria totalidade.
No que tange ao conceito de memória, de Le Goff, convém afirmar que pode-se perfeitamente relacioná-lo com o processo de produção de consciência da classe trabalhadora, conforme enunciado por Marx, uma vez que a memória para Le Goff e, conforme anteriormente sinalizado, pode ser um poderoso mecanismo de manipulação coletiva se utilizado por forças conservadoras.
Neste sentido, o diálogo com teóricos que podem ser considerados pela literatura marxiana e pela tradição marxista, como representantes científicos da classe burguesa, podem ter um reconhecimento também científico de suas análises acerca das realidades sócio-econômico-culturais, cabendo ao interlocutor superá-las, tanto a partir de uma teoria verdadeiramente crítica, quanto pela consciência de que “existem diferentes pontos de vista científicos que estão vinculados a diferentes pontos de vista de classe.” (Lowy, 1985: 104).
Sendo assim, defendo que as representações que temos acerca da AIDS, hoje, ainda guardam significativos elementos que surgiram nos primórdios da epidemia e que, lamentavelmente, reforçam preconceitos e estigmas vinculados a forças conservadoras e retrógradas, que por sua vez geram atitudes individuais e coletivas excludentes.
(1) Segundo revela o artigo de Olívia Pavani Naveira, Fernand Braudel e Jacques Le Goff situam-se entre os autores da chamada Escola dos Annales, cujas propostas encontram-se em dois eixos centrais que são a reinvindicação de uma história experimental científica e a convicção de uma unidade em construção entre a História e as Ciências Sociais. Delimita-se , assim, como objetivo primordial tirar a História de seu isolamento disciplinar, liberando-a para envolver-se em temáticas e metodologias existentes em outras disciplinas, revelando a intenção de fazer uma história de caráter interdisciplinar. Cabe ressaltar uma importante diferença entre a referida escola e o marxismo utópico, tendo em vista que não existe nos Annales uma teoria de transformação social e de luta de classes. O “evento’ histórico, nesta pespectiva, não é, portanto, ruptura, transformação profunda e estrutural. NAVEIRA, Olívia Pavani. “Os Annales e as suas influências com as ciências sociais”. www.klepsidra.net – acesso em 16/06/2006.
(2) Os hemofílicos também foram identificados como potenciais portadores do vírus HIV, em uma época em que o sangue, proveniente dos bancos de sangue particulares, eram de qualidade estritamente duvidosa, tendo um controle quase nulo do Estado sobre as referidas práticas. O diferencial desta população, é que frente à opinião pública, eram considerados “vítimas inocentes” da infecção pelo HIV. PARKER, Richard. A Construção da Solidariedade. AIDS, sexualidade e política no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992: 35.

Bibliografia
BRAUDEL, Fernand. Reflexões Sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1992b.
__________. História e Ciências Sociais: a longa duração. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1992a.
CERQUEIRA, Marcelo e MOTT, Luiz. AIDS e suas Interfaces com a Violência. Mimeo, 1999.
COUTINHO, Carlos Nelson. “Pluralismo: dimensões teóricas e políticas”. In Cadernos ABESS, n.4. São Paulo: Ed. Cortez, 1991.
GALVÃO, Jane. “As respostas religiosas frente à epidemia de HIV/AIDS no Brasil In Parker, Richard (org). Políticas, Instituições e Aids: enfrentando a epidemia no Brasil”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, ABIA, 1997.
.LE GOFF, Jacques. Memória, história e memória. Campina: Ed, UNICAMP, 1994.

As paradas gays e o marasmo existencial


Aconteceu no último dia 23 de novembro, a terceira parada gay da Zona Leste de São Paulo. Acho que é a temporão. Não me surpreendi com a data. Há muito tempo o dia 28 de junho (Dia Internacional do Orgulho Gay) deixou de ser uma referência para os eventos da militância LGBTTS. Isso se deve a vários motivos. Mas o principal, considero, são as especificidades de cada lugar onde ocorre parada. Estas especificidades relacionam-se, em primeiro lugar, à boa vontade e interesse das autoridades em liberar o espaço onde vai ocorrer o evento (em geral a avenida mais movimentada da cidade ou bairro). Como as paradas ultimamente viraram um grande celeiro de votos, o dilema é quase sempre resolvido.
Outra especificidade está ligada aos patrocínios e apoios. Tendo em vista que a população alvo mostra-se extremamente consumidora, os apoios acabam surgindo (boates, sites de relacionamento, saunas, além do imprescindível apoio público), viabilizando apoio logístico/estrutural. Considero este o mais importante. Não consigo imaginar uma parada LGBTTS sem os famosos trios elétricos, e que transformam um evento pretensamente político em um grande micareta. Claro que o teor político das paradas está capengando, mas não se pode negar que nunca, o chamando movimento gay, teve tanta visibilidade, mesmo que às custas de matérias sensacionalistas e ridículas. Mas voltemos às especificidades. Talvez o menos preponderante para a viabilização destas manifestações seja as diferenças que encontramos dentro do próprio movimento. Como se pode observar, está cada vez mais nítida uma grande cisão entre o que chamamos genericamente de homossexuais. Nesta imensa fauna de indivíduos ávidos por igualdade podemos distinguir um grande espectro de sexualidades e seus comportamentos correlatos, o que transforma as paradas gays em um grande espetáculo, que faz jus ao seu símbolo maior: o arco-íris. Temos hoje como representantes desses matizes entendidos, travestis, transexuais, bichas-loucas, boysinhos, barbies, caminhoneiras, lesbian-chics, gilettes etc, etc... É muita informação, acreditem. E essa é a riqueza que guarda cada parada gay. Dependendo do lugar onde ocorrem, esses personagens da vida real aparecem com mais ou menos intensidade ou quantidade, caracterizando de maneira explícita o modus vivendi de cada território. Traduzindo: a forma como a população GLBTT é tratada ou vista pelo local.
As paradas surgem, portanto, como uma alternativa (legítima) ao marasmo da cidade/localidade, o que faz com que a relação gay-alegria se acentue. Se isso é uma estratégia, eu não sei. Mas acredito tratar-se de uma faca de dois gumes, que pode voltar em forma de estigma e exigências estapafúrdias (todo gay tem a obrigação de estar alegre). Mas a estratégia anti-marasmo está dentro de um contexto maior. Trata-se de uma tendência global, que Guy Debord chamou há quatro décadas atrás de “sociedade do espetáculo”: “Nosso tempo, sem dúvida... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser”, afirma o pensador. Nessa lógica, as micaretas gays cumprem bem seu mandato, quebrando o marasmo social. Espero que quebrem, também, o marasmo existencial de milhares de homens e mulheres, que continuam, por motivos de ordem estritamente pessoal, a reprimir seus desejos mais intensos.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Ultima Parada - 174


Grande parte do sucesso do cinema nacional, na atualidade, deve-se à descoberta do filão violência – injustiça social (Pixote, Cidade de Deus, Tropa de Elite, etc). Como outrora tivemos o filão da sexualidade gratuita, principalmente nas comédias de mau gosto da Boca do Lixo, hoje enveredamos por um esforço de reflexão sobre a questão social, que constrói homens, mulheres e crianças desafortunados e engolidos por um sistema cruel e desigual. Digo que é um esforço, porque o compromisso de um filme com o orçamento de “Ultima parada – 174”, que estreiou no último dia 24, justifica-se pela necessidade de fazer com que milhões de pessoas assistam a película. Isso implica em um certo compromisso com a grande indústria cinematográfica, sem dúvida. Em síntese: deve render dindim e prêmios. O Filme de Bruno Barreto mostra-se competente nisso e merece ser visto, não só pelo esforço reflexivo e capricho da direção, mas principalmente pelas excelentes atuações (destaco Cris Vianna, Michel Gomes e Marcello Melo).
Impossível não fazer comparação com o documentário de José Padilha (Ônibus 174), mas trata-se de uma outra proposta. O filme de Barreto traz elementos que conseguem aglutinar um bom roteiro (Mauro Mantovani), crítica social, boa qualidade, alto orçamento e um lançamento competente (Globo Filmes, Moonshot Pictures, Movie & Art, Paramount Pictures -135 cópias), sem a pieguice que às vezes impregna filmes com proposta social. Apesar de a sinopse dizer tratar-se de um filme “sobre a natureza humana” e não sobre os problemas sociais brasileiros, fica impossível não associar as misérias humanas ao que as determinam: as condições desumanas de vida. O filme consegue trazer à tona a velha discussão que sempre lança a pergunta: de onde surgem os atos ilícitos praticados por crianças e adolescentes? Sem dúvida fica claro, muitas vezes no filme, tratar-se de um grande esquema que suga destes jovens suas potencialidades criativas e de vida. Como pode uma criança sobreviver a condições subumanas de vida, sem que isso não as tornem frias... agressivas? Não me parece possível estabelecer um corte entre o indivíduo e a sociedade que o constrói. Esse é o grande mérito do filme. Consegue estabelecer de forma competente um elo entre o particular e a estrutura onde esse particular está inserido. E Barreto não mede esforços para que tal conexão seja feita. Utiliza-se de muitos elementos simbólicos do que eu, particularmente, chamo de luta de classes: a mãe viciada que perde seu filho para o bandido da favela, o filho que cresce nas mãos do bandido perigoso da favela, o filho que se torna um bandido, a mãe convertida e arrependida que procura o filho perdido, sexo entre meninos e meninas em situação de rua, a heroína de classe média da ONG, que dá murros em ponta de faca, a truculência policial, pobreza, desigualdade, revolta e por aí vai. Fora estes jargões da ficção engajada, o filme consegue manter uma crítica interessante ao que chamamos de desigualdade social e, ainda assim, falar de questões da ordem do particular, do indivíduo, da natureza humana. Escorrega em alguns exageros, como o caso da estagiária no ônibus que, alheia ao que está acontecendo, tenta justificar um atraso para o chefe, diante de uma arma em suas fuças. Mas tudo bem... nada é perfeito. O filme vale a pena ser visto, pela coragem de mostrar que, qualquer criança ou adolescente que tenha passado pelas humilhações pelas quais passaram os muitos Sandros, poderiam ter seu dia de fúria. Tomara que o filme consiga convencer-nos de que a violência, praticada por crianças e adolescentes infratores, é infinitamente menor que a violência que sofreram durante toda a vida.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Eloá e a violência de gênero




Esperei passar um pouco a comoção para escrever sobre o caso Eloá. Assassinatos de mulheres sempre mexem comigo. Minha biografia, de certa forma, está vinculada ao feminismo. Sou filho de uma mulher forte e vencedora, o que não foi o suficiente para cortar bons dobrados nas mãos dos homens. Isso gerou elementos críticos em minha consciência, a ponto de militar em uma causa que aparentemente não é minha. Uma causa cujo discurso oficial dá como perdida, todas as vezes que aparecem na mídia casos como o de Eloá.
O que mais me revoltou nesse triste episódio, fora o assassinato propriamente dito, foi a forma como agiu a polícia, que a todo momento parecia querer justificar a violência praticada pelo assassino. Como se estivesse autorizando (porque vem de autoridades constituídas) a todo o momento, o seqüestrador a, em nome de um suposto amor, praticar tal ato de violência. O pior dessa estória, é que tal justificativa se dá sob uma nova roupagem, travestida de um psicologismo barato, e com o suposto objetivo de salvar a todos. De fato todos foram salvos. Menos a grande vítima: Eloá. A velha roupagem deste crime é o nosso velho conhecido crime passional. Em poucas palavras: um homem traído, violentado em sua masculinidade, seduzido pelos terríveis atributos de “Eva”, pode tudo, inclusive maltratar, violentar, matar... E isso se justifica porque cabe a mulher cumprir de forma exemplar seu destino de perfeita. As mulheres não podem ter desejo e quando ousam usar de uma transgressora liberdade podem ser (e quase sempre o são), punidas. Liberdade para as mulheres ainda implica em sanções. Como ousa uma mulecota de 15 anos terminar com um homem de 22, arrumar um outro namoradinho e sair ilesa dessa estória? Não pode! O coitado tinha de surtar! Essa foi a impressão que tive, com a história oficial que me estava sendo narrada, tanto pela polícia, quanto por parte da imprensa sensacionalista. Isso me entristece, pois parece que foi estéril o esforço de feministas na década de 70, que picharam os muros das grandes capitais, com a palavra de ordem “Quem ama não mata”. O sangue de Ângela Diniz parece não ter sido suficiente para desmontar a farsa do homem vítima da mulher devoradora, a qual cabe a justiça feita pelas próprias mãos. Décadas mais tarde, Maria da Penha Maia quebrou o silêncio de anos de violência praticada por seu marido, dando origem a lei que leva o seu nome. Importante passo para a criminalização de atos de violência contra a mulher. Mas esses fatos históricos e dolorosos, além de todos aqueles que carecem de visibilidade, mas que estão presentes em nosso cotidiano, parecem não ter sido suficientes para fazer com que os crimes praticados em decorrência do gênero sejam tratados com rigor. Tenho a nítida impressão de que se Eloá não tivesse sido morta, a possibilidade de o assassino ser perdoado pela opinião pública, e quiçá pela justiça, seria grande. O que não entra em minha cabeça é a mistura que faz entre ser honesto (trabalhador!) e mau caráter, machista. Por isso, nós homens, temos de entrar nessa luta da violência contra as mulheres. O que ocorreu em Santo André foi um caso de violência de gênero. Não o caso de violência de um homem trabalhador apaixonado e obsecado, contra a adolescente sedutora e alegre. Foi um caso que se perpetua sob novas roupagens e que dão origem a inúmeras formas de violência contra a mulher, cujas sutilezas não permitem que as identifiquemos como parte da problemática de gênero.